O seguro é uma socialização do risco, dizia Delfim Neto

“Seguros têm uma demanda incrível. É quase impossível viver sem seguros nos dias de hoje”, dizia o economista

O economista Delfim Neto entendia como poucos o mercado de seguros. “O futuro é opaco e não há hipótese de conhecê-lo. Para se proteger contra o futuro, nos casos em que os riscos são probabilisticamente estimados, a única opção é o seguro”, me disse certa vez durante uma entrevista para a Revista de Seguros, da CNseg, a confederação das seguradoras.

O ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento Antônio Delfim Netto, morre neste segunda-feira, aos 96 anos. Ele estava internado desde o último dia 5 no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. A assessoria de Delfim não informou a causa da morte. Em nota, diz que ele morreu “em decorrências de complicações no seu quadro de saúde”.

Saiba mais sobre como este brilhante economista enxergava o mercado de seguros.

Fonte: Revista de Seguros, edição de julho, agosto e setembro de 2022

O futuro é opaco e não há hipótese de conhecê-lo. Para se proteger contra o futuro, nos casos em que os riscos são probabilisticamente estimados, a única opção é o seguro. Quem afirma é o economista Antônio Delfim Netto, 84 anos, que concedeu esta entrevista à Revista de Seguros no escritório de sua casa, que fica em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo. Ex-ministro dos governos militares dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e um dos principais conselheiros dos governos da era PT, Delfim Netto acredita que a indústria de seguros vai crescer muito nos próximos anos. “Seguros têm uma demanda incrível. É quase impossível viver sem seguros nos dias de hoje”, diz.

O senhor foi ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento, além de deputado federal por cinco mandatos consecutivos. Com o olhar de governo, como o senhor vê a criação de mais uma estatal, a Segurobras?

Antônio Delfim Netto – Cada vez que um cérebro peregrino inventa uma nova forma de organização, termina em porcaria. Temos aí o que está acontecendo com China, Rússia, Cuba e Venezuela. Eu não sei por que é preciso criar a estatal. Já devíamos ter aprendido que não se revolve nada criando empresas estatais, que são, na minha opinião, mais um instrumento de dificuldade.

O governo acredita que vai ajudar a alavancar os investimentos em infraestrutura ofertando garantias para os riscos dos grandes empreendimentos?

Eu não acredito nisso. Se o governo ficou chateado com algum seguro não pago, é preciso entender melhor o que aconteceu, pois contrato é contrato e tem de ser respeitado. A ideia de se socializar o risco com uma empresa do governo é besteira, uma atitude equivocada, a meu ver. Hoje se faz seguro de tudo no mundo e o seguro proposto pelo governo é mais caro do que o custo ofertado por empresas privadas, pois, em geral, é feito sem muita análise de risco. E não dá para brincar com esse tipo de coisa. Seguro é uma atividade estritamente atuarial, de avaliação objetiva do risco.

Mas muitas construtoras reclamam que o preço cobrado está salgado demais e que alguns riscos as seguradoras não querem assumir?

Não tem almoço grátis, tudo tem seu custo. Estou dividindo o risco com a seguradora e para isso tenho de pagar um preço. Para outras coisas, não há seguro. Seguro para taxa de juros daqui a 20 anos? Não tem. Há incertezas contra as quais não se pode lutar, mas há riscos que podem ser estimados. Nestes casos, o seguro é uma solução confortável.

Mesmo assim, o governo está tirando a Segurobras do papel?

Bem, o governo faz o que quer. Por isso é governo. Mas é importante entender que uma empresa é um ser vivo. Adquire vida própria. Temos duas funções na vida: uma é conservar-se e outra reproduzir-se. Com as empresas acontece a mesma coisa. Só posso ser chefe se tenho alguém subordinado a mim. Uma estatal não vive bem se não tiver outra estatal sob seu comando. Mas não precisa criar uma estatal para cada problema que existe. Às vezes é preciso contar com uma empresa pública, no caso de o setor privado não atender às necessidades. O que não é o caso.

Alguns estrangeiros que chegaram ao Brasil com planos de atuar em seguros de grandes obras sentem-se frustrados, com as mudanças regulatórias do resseguro, com a Segurobras e com o fato de o país estar crescendo abaixo do esperado. É possível arriscar previsões de crescimento?

O país crescerá 2% no ano, provavelmente um pouco menos. O que todos têm de entender é que o Brasil faz parte de um mundo que está em crise. Estamos numa situação muito delicada e nosso crescimento depende do que acontece no mundo. Se vamos crescer rápido ou mais devagar, vai depender dos acontecimentos mundiais e também da retomada dos investimentos no Brasil.

O senhor acredita que o pacote de medidas anunciado pelo governo, focado em investimentos de infraestrutura, ajudará a criar um novo ciclo de otimismo na economia brasileira?

O momento de pessimismo do Brasil, fruto da retração bancária e do acúmulo de liquidez por empresas e pessoas físicas, vai passar quando o Estado quebrar esse ciclo. Para isso, ele tem de fazer leilões inteligentes e transferir uma boa parte dos investimentos necessários em infraestrutura para o setor privado. Dessa forma, o governo se dedica ao que ele tem de fazer: política econômica, controle das contas e estímulo a um Banco Central independente, que mantenha a inflação sob controle e, consequentemente, a solidez do sistema financeiro.

Quando o senhor foi ministro da Fazenda, disse a empresários do setor que queria fazer a economia brasileira tão forte como a japonesa e, para isso, dependia de ter um mercado de seguros forte. Foi isso?

O seguro é uma socialização do risco, que permite que as pessoas, as empresas e o próprio governo assumam mais riscos. E, no fundo, crescer é assumir risco. quem quer crescer sem correr risco, tem que ter a proteção do seguro.

Que áreas o senhor considera importante para a atuação das seguradoras?

Todas. Seguro realmente é fundamental para uma economia forte. Veja só um bom exemplo. O que falta na agricultura brasileira? Só uma coisa: um bom seguro para a safra, para que a agricultura não flutue. Nos anos bons, a agricultura ‘nada’ em dinheiro e, nos ruins, acumula dívidas. Depois que contrai a dívida com as taxas de juros que o País pratica, o agricultor não sai mais do buraco. Para um bom sistema econômico, temos de ter um bom mercado de seguros.

E qual sua avalição sobre a evolução do microsseguro?

O cidadão aprende que o seguro é muito importante. quando falamos dos produtos de microsseguros é o mesmo que dizer que se está dando formas para as pessoas de menor renda socializar seus riscos. Seguro é o serviço que mais cresce na economia. A elasticidade é gigantesca.

E a previdência, como o senhor vê esse assunto?

Previdência não tem solução. E esse é um problema mundial. É preciso ajustes a cada momento, principalmente para os sistemas que não são estáveis do ponto de vista atuarial. Vai-se acumulando uma dívida contingencial impagável. O avanço da expectativa de vida é algo impressionante e é óbvio que não se pode mais pensar em aposentadoria aos 60 anos.

O setor privado ajuda a melhorar esse cenário?

Sim, ajuda. Mas no fundo temos de entender que aqueles que produziram e pouparam para arcar com seu próprio sustento acabam tendo que dividir a conta. Aqueles que não tiveram condições de fazer essa poupança, por motivos diversos, precisam ser supridos pela previdência pública. É um grande avanço que precisa ser feito nesse setor. Estou muito satisfeito com o ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves Filho. Ele tem exposto ideias muito claras.

Tem algum sistema que possa servir de exemplo para o Brasil?

Em todos os lugares o problema da aposentadoria é um problema crítico. Não existe nenhum sistema, mesmo nos países nórdicos, que não tenha dificuldades.

O povo brasileiro tem uma consciência muito restrita sobre responsabilidade civil. Uma prova disso é que 80% contratam seguro para o casco do carro e não para indenizar terceiros, mesmo que isso possa custar muito mais do que o veículo. O sr. acha que isso vai mudar também?

Sim, claro que tende a mudar. O carro hoje é a aspiração máxima do brasileiro, que deseja ter o carro e cuida dele para chegar com estilo na missa de domingo. O carro, para ele, é uma expansão de si mesmo. Só que não sobra dinheiro para mais nada. Seguro do carro é muito caro e está fora do alcance destas pessoas. Em geral, o brasileiro que está chegando agora ao mundo do consumo, que vê o carro quase como um objetivo de vida, não calcula o custo. Ele paga uma prestação mensal de R$ 300 e não se dá conta de que vai gastar R$ 600 de combustível e que preci- sará fazer um seguro. Mas, se ele tiver de sacrificar algo, não será a si mesmo. A mentalidade é a seguinte: se houver um acidente com o carro, a pessoa acha que estará perdida; mas se atropelar alguém, dará um jeito. Eu creio que isso vem mudando, pois as pessoas percebem que agora, para manter o padrão social, têm que se proteger.

O Judiciário ajudaria a acelerar essa consciência?

Não, o Judiciário é lento e complica muito. Veja o leasing. Uma operação que dominava o financiamento de veículos e acabou porque o Ministério Público passou a considerar que o banco era o dono do carro e, portanto, o responsável por tudo. Pelas multas, pelos impostos e até mesmo pelas despesas de um atropelamento.

Então, ainda teremos que esperar muito para ver mudanças…

O Brasil está melhorando. Não há país emergente que tenha as condições do Brasil. As instituições estão funcionando, temos um regime democrático, com eleições de quatro em quatro anos – e não há fraudes. O País tem o Supremo Tribunal Federal que é o defensor da liberdade. Veja o caso da China, por exemplo. Outro dia saiu o relatório do fórum mundial sobre propriedade privada afirmando que a China é muito melhor do que o Brasil. Só na cabeça de quem escreve o relatório. Não precisa ir para a China para saber o que está errado. Basta pensar. quem dá as informações são os próprios países – no Brasil, são os empresários e, na China, as empresas que pertencem ao governo. Ou seja, o relatório fica sujeito a equívocos, a enganos.

O que o senhor acha que falta para a indústria de seguro deslanchar?

O mercado tem de vender seu peixe. Tem de mostrar o seguinte: eu presto um bom serviço para você por um preço muito módico. E deixar de ter complicações nas cláusulas dos contratos. Seguro ainda é complicado e a prova disso está na dificuldade que as pessoas enfrentam na hora de receber uma indenização. Sempre tem um probleminha. É preciso ter assimetria de informação, sem uma malandragem recíproca. Veja só um bom exemplo. O que falta na agricultura brasileira? Só uma coisa: um bom seguro para a safra, para que a agricultura não flutue”.

Denise Bueno
Denise Buenohttp://www.sonhoseguro.com.br/
Denise Bueno sempre atuou na área de jornalismo econômico. Desde agosto de 2008 atua como jornalista freelancer, escrevendo matérias sobre finanças para cadernos especiais produzidos pelo jornal Valor Econômico, bem como para revistas como Época, Veja, Você S/A, Valor Financeiro, Valor 1000, Fiesp, ACSP, Revista de Seguros (CNSeg) entre outras publicações. É colunista do InfoMoney e do SindSeg-SP. Foi articulista da Revista Apólice. Escreveu artigos diariamente sobre seguros, resseguros, previdência e capitalização entre 1992 até agosto de 2008 para o jornal econômico Gazeta Mercantil. Recebeu, por 12 vezes, o prêmio de melhor jornalista de seguro em concursos diversos do setor e da grande mídia.

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