As empresas de seguros estão assustadas. Não à toa. A calamidade na região Sul do Brasil já é tida como a maopr na história do país, que lembra em muitos aspectos o rastro de destruição deixado pelo furacão Katrina, em 2005. Obviamente não se pode correlacionar às perdas no maior mercado consumidor de seguros do mundo, os Estados Unidos, com 44% da receita anual de US$ 7 trilhões em 2023, com o Brasil, com 1,1%, de acordo com estudo da Swiss Re em números absolutos. Mas a experiência sim.
As seguradoras pagaram, na época, US$ 40 bilhões em indenizações, enquanto o governo George W. Bush sofreu duras críticas. Há muitos números e estudos sobre a tragédia que arrasou a cidade de New Orleans, deixando quase 1,4 mil mortos e mais de 1 milhão de desalojados na região americana da Costa do Golfo do México. Para os mais visuais, recomendo a série da Apple “Cinco dias no Hospital Memorial”.
A magnitude do Furacão Katrina fez florescer uma profunda discussão sobre como os Estados Unidos tratam das conseqüências financeiras de desastres naturais, e as relações existentes entre as seguradoras, resseguradoras e políticas públicas de atendimento às vítimas. Como aqui agora, 19 anos depois. Cerca de 200 mil imóveis ficaram debaixo d’água. Somente após várias semanas a água foi totalmente bombeada para fora da cidade do jazz.
A consultoria Alvarez & Marsal, especializada na gestão financeiras de crises graves, firmou um acordo com a prefeitura de Porto Alegre para elaborar um plano de reconstrução da infraestrutura do município, que sofre com uma enchente histórica há cerca de duas semanas. Por 30 dias, a consultoria prestará serviços pro bono, ou seja, voluntários, para a elaboração de um plano preliminar de reconstrução da capital gaúcha. “No momento, a equipe concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura, apresentará cronograma para implementação”, disse a Alvarez & Marsal em nota.
Assim como se sabia há muito tempo que Nova Orleans era vulnerável a inundações, já se sabia que a região Sul sofreria com as mudanças climáticas. “Desta vez, o evento climático atingiu também pessoas que têm dinheiro para adquirir seguros. Até então, os danos ficavam resumidos a pessoas pobres, invasores de encostas ou população abandonada pelo Poder Público. Agora, no RS, foi diferente”, comenta o advogado especializado em seguros de responsabilidade civil, Walter Polido.
Executivos de seguros ainda não podem precisar os valores, mas sabem que a calamidade no Rio Grande do Sul, que já contabiliza 145 mortes, 806 feridos e 132 desaparecidos nos 447 municípios afetados exigirá indenizações nas mais diversas linhas de negócios, de seguro de vida ao lucro que empresas afetadas deixam de ter por estarem paradas, cobertura conhecida como lucros cessantes.
“Ainda é difícil estimar o total de perdas; e até o escoar das águas serão muitos os desafios para avaliação objetiva dos danos e custos de reconstrução. Entretanto, pela dimensão da tragédia, cálculos preliminares indicam que a conta será alta”, comenta no Linkedin o especialista em gerenciamento de riscos da Risk Veritas, Alfredo Chaia. “Os efeitos do fracasso na gestão do clima já chegaram com aumento na frequência e gravidade de condições climáticas severas”.
Analistas de bancos divulgaram relatórios avaliando apenas as empresas listadas em bolsa e poucas ligadas a bancos listados. No entanto, os bancos digitais e oficiais tem boa parte de suas receitas provenientes da venda de seguros. Estratégias começam a ser revistas para compensar um possível recuo das vendas no Sul e com o aumento de preços em diversas linhas, como auto, para recompor as perdas. Se avalia também o aumento da demanda por pessoas que ainda não compravam seguro.
Os analistas citam como principais prejudicados o ressegurador IRB, que divulga balaço após o fechamento do mercado nesta segunda-feira (13), Porto, com balanço previsto para terça-feira, também após o fechamento da bolsa, BB Seguridade e Caixa Seguridade, entre as principais. O Banrisul também é citado como um dos mais afetados. Suas parcerias para venda de seguro automóvel aos clientes são Allianz e HDI, duas subsidiárias dos maiores grupos seguradores da Alemanha.
São tantos pormenores para calcular as indenizações, que ainda é cedo para qualquer afirmação. Além disso, as pessoas ainda estão buscando um lugar seguro. Só depois disto é que vão acionar o seguro. Muitas podem descobrir que a apólice não cobre efeitos da natureza, inundação ou alagamento. Outros, como donos de carros, ficarão aliviados em saber que tem a cobertura, mas podem se frustrar com o valor muito abaixo do necessário para a reconstrução do foi perdido. E bem poucos, que compram seguro de forma consciente, agradecerão ao gestor de risco e ao corretor de seguro por terem feito uma compra consciente.
“Enchente é cláusula excludente da maioria dos seguros empresariais. As que disponibilizam, duas ou três, pelo menos aqui no Rio Grande do Sul, cobram taxa de aproximadamente 10% sobre a importância segurada para alagamento, limitado ao máximo de R$ 30 mil. Tenho 10 segurados de riscos empresariais (até o momento), que estão com suas empresas embaixo d’água, e tive de informar que não terá cobertura e que a jurisprudência dá ganho de causa para a seguradora”, relatou Ranieri G Von Dentzsch, sócio-responsável técnico na Ritmo Corretora de Seguros, no Linkedin.
Um dos casos (com perspectiva feliz para o cliente) comentado nos bastidores é sobre o seguro do aeroporto de Porto Alegre. Por ter uma apólice global na Alemanha, tem uma cobertura mais abrangente. A Fraport Brasil – Porto Alegre é subsidiária da Fraport AG Frankfurt Airport Services Worldwide, uma das empresas líderes no mercado global de aeroportos.
A região Sul está entre os principais consumidores de seguros do Brasil em linhas como seguro auto, residencial, empresas, agronegócios. No ano passado, somente o Rio Grande do Sul registrou arrecadação de R$ 26 bilhões para as seguradoras, com R$ 10,3 bilhões em indenizações pagas.
O seguro automóvel foi responsável por vendas de R$ 4 bilhões, seguro rural por R$ 2,5 bilhões e patrimonial por R$ 1,6 bilhão, segundo dados da Susep analisados pela consultoria Siscorp. Cerca de 98% dos seguros auto tem cobertura compreensiva, ou seja, dá cobertura para danos da natureza. Seguros de vida e planos de previdência somaram arrecadações de R$ 15 bilhões. Segundo a CNseg, o Sul tem a maior penetração de seguro residencial no país, de 38%, seguido por São Paulo, com 29%.
O IRB(RE), como o maior ressegurador do Brasil, atua em diversas pontas, inclusive repassando o risco que assume a outras empresas, em contratos de retrocessão, que mitigarão de forma significativa a perda estimada ao dividir os custos com os parceiros de riscos. Tem parte do resseguro dos contratos da Caixa no habitacional, que representam 7% das vendas, e no residencial, 5%. O seguro cobre, de forma automática, danos com inundações no habitacional. Já no residencial, apenas se o cliente pediu para ter a cobertura.
O IRB (RE) também tem contratos de resseguros relevantes na cobertura de agronegócios. No entanto, há informações de que entre 70% a 80% da safra já havia sido colhida, o que reduz muito a perda. Mas quanto desta colheita ainda estava nos silos? Em grandes empresas como Gerdau e Havan, há também contrato de resseguro com previsão de ser acionado, sendo lucro cessante o principal.
A Porto é a maior seguradora de auto no Brasil. No Sul, as vendas deste seguro chegaram R$ 4 bilhões em 2023. A liderança na região é da HDI, com receitas de R$ 1,27 bilhão, sendo a Porto a segunda, com R$ 770 milhões. Em seguros patrimoniais, com vendas de R$ 1,6 bilhão no ano passado, a liderança é da Mapfre, com R$ 361 milhões, seguida da HDI (R$ 269 milhões), e Porto (R$ 127 milhões).
Um ponto muito levantado pelos entrevistados está no Gap de proteção. Estudo da Swiss Re revela que menos de um terço das perdas por catástrofes naturais na América Latina e no Caribe em 2023 tinha a proteção de seguros. Foram US$ 15,9 bilhões em perdas totais, dos quais apenas US$ 5,1 bilhões tinham seguro.
Segundo Polido, muitas vezes os clausulados dos contratos indicam exclusões genéricas e há necessidade de aquisição de coberturas acessórias para inundação, alagamento, rompimento de adutoras e afins. “O risco de água não pode ter esse tipo de tratamento altamente segmentado. Os síndicos de prédios, por exemplo, ficam em palpos de aranha diante de tamanha variação de cláusulas adicionais, sendo que eles sempre são pressionados pelos condôminos para diminuir custos”, diz, sugerindo mudanças na oferta e investimento na educação de seguros para que a sociedade faça escolhas mais conscientes.
“A imagem do seguro nunca esteve tão exposta como agora nesta situação catastrófica. Dependendo da postura das seguradoras, o resultado poderá ser muito negativo. O seguro deve acolher, deve prestar a melhor assistência possível, garantindo de maneira objetiva e célere a reposição das perdas e principalmente a continuação dos negócios. Se isso falhar, o seguro será rebaixado na crença popular, que já não tem grande estima por ele. Os riscos catastróficos são recorrentes e o Brasil deixou de ser uma zona de conforto”, acrescenta.
De acordo com o Instituto de Informações de Seguros (Insurance Information Institute (I.I.I.), a judicialização no caso do Katrina foi baixa. Dos quase 2 milhões de pedidos relacionadas a danos em residências, imóveis comerciais, negócios em geral e veículos em seis estados americanos, estima-se que menos que 2% das queixas de proprietários de imóveis de Louisiana e Mississippi foram solucionados por mediação ou pela via judicial contenciosa.
Polido faz coro a uma leva de executivos sobre a urgência da mudança de postura do mercado de seguros e do Poder Público. “Precisam acompanhar o novo ciclo climatológico que se instalou no planeta. Precisam tratar a questão de frente, com novos incentivos à gestão de riscos – inclusive financiando projetos nos centros acadêmicos do país, assim como os europeus e os americanos já fazem há muito. Não há paliativo para este cenário. O resseguro é peça fundamental no contexto”.
Realmente são. A boa notícia é que a compra de resseguro pelas seguradoras no Brasil tem avançado. Mesmo assim, ainda é pouco comparado a outros países. A justificativa era de que o Brasil estava livre de catástrofes. Mas agora certamente este rótulo será rasgado. O Brasil teve 12 eventos climáticos extremos em 2023, sendo um deles as chuvas intensas que aconteceram no Rio Grande do Sul, em setembro, segundo relatório publicado na semana passada, pela Organização Meteorológica Mundial, agência especializada da ONU.
“As seguradoras estão com medo”, disse ao Reset um graduado executivo do setor. Alguns modelos inovadores para atrair o capital privado, seja com a ajuda de bancos de desenvolvimento ou com novos instrumentos financeiros, estão sendo testados – inclusive em Porto Alegre. A capital gaúcha faz parte do piloto de uma plataforma de seguros para cidades. A iniciativa é liderada pelo Iclei, uma ONG que reúne cerca de 2 mil governos subnacionais do mundo todo.
As Letras de Risco Seguro, ou “insurance-linked securities” (ILS), semelhante aos cat Bonds já desenvolvidos na Europa, que usam como lastro carteiras de seguros e resseguros, tinham previsão de ter o primeiro lançamento em dois meses. Mas agora, com a situação do Sul, será preciso aguardar o apetite dos investidores.
O interesse por esse tipo de dívida ainda é uma incógnita, diz Leonardo Gava, gerente-sênior de Transição Agrícola da Climate Bonds Initiative, uma entidade que certifica bonds sustentáveis, ao Reset. Por um lado, o mercado de securitização no Brasil em geral desperta apetite, afirma Gava. “Mas, com o que vemos agora no Rio Grande do Sul e outros lugares, o risco parece ser alto. Não temos ideia da disposição dos investidores domésticos para isso.”
A partir das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul no ano passado, a Guy Carpenter acelerou o desenvolvimento de um modelo preditivo de catástrofes climáticas para o Brasil, destacou o Valor em reportagem no último domingo. Segundo Pedro Farme, CEO da companhia, a intenção é disponibilizar a ferramenta até o fim do ano. “Queremos lançar, inicialmente, dois modelos, um preditivo de alagamento e outro para ventos, mas também vamos expandir futuramente para outros eventos, como seca, granizo e incêndios.”
Por ora, o que temos, é o resgate de pessoas pelas seguradoras e o desejo de que tudo se restabeleça, da melhor forma possível, com gestão e mitigação de riscos, para a reconstrução do Rio Grande do Sul. E se este não for o maior sinistro do setor de seguros em termos de números, que seja aquele que impulsionará o Brasil a subir no ranking de adaptações climáticas.
O Brasil é um dos piores países do mundo no quesito resiliência a eventos extremos como secas, chuvas torrenciais e ondas de calor ou frio, e na capacidade de agir para reduzir seus impactos humanos e econômicos. Na comparação com outras 184 nações, o Brasil está em 86º lugar no potencial de resistir e se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas, segundo o índice ND-GAIN, elaborado pela Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. O ranking existe desde 1995 e já estivemos mais bem posicionados — começamos a ficar abaixo do 85º lugar só a partir de 2010. Noruega, Finlândia e Suíça ocupam as primeiras posições, informou o Estadão.