No Brasil, seguradoras enfrentam raros casos de pedidos de lucro cessante por pandemia

Se não houver consenso, é possível tentar uma mediação ou conciliação, antes de litigar, recomenda a advogada Márcia Cicarelli

Um temor ronda o mercado segurador mundial desde o início da pandemia: a judicialização. Entenda-se aqui ter de indenizar apólices de seguros com exclusão de cobertura para pandemia. No dia 15 de janeiro deste ano, a Justiça britânica decidiu a favor de um grande número de pequenas e médias empresas que, representadas pelo regulador financeiro, contestaram a decisão das seguradoras de não as indenizar por lucro cessante pela interrupção da sua atividade devido à pandemia de coronavírus.

Esta decisão poderá influenciar várias partes do mundo, inclusive o Brasil, onde a cobertura securitária é encontrada em seguros empresariais, de riscos operacionais e de riscos nomeados. No Reino Unido a perspectiva é de que terá consequências para cerca de 370 mil empresas, poderá implicar uma indenização de US$ 1,6 bilhão, segundo cálculos da FCA, autoridade de conduta financeira. Trata-se de empresas que tiveram de fechar as portas, como lojas, bares, restaurantes e boates.

A advogada Marcia Cicarelli, do Demarest Advogados, comentou o assunto com o blog Sonho Seguro. Leia os principais trechos da entrevista concedida por email:

Como você ve a definição da Justiça britânica de que os pagamentos de lucros cessantes devem ser feitos pelas seguradoras aos seus clientes?

A decisão leva em consideração cláusulas específicas em que o pagamento de lucros cessantes não está vinculado à exigência de dano material à propriedade tangível. São as chamadas cláusulas de ocorrência de doença notificável e/ou de impedimento de acesso por autoridade governamental. Considerando um contexto novo, de pandemia, o objetivo do julgamento na Justiça Britânica foi garantir maior certeza sobre a interpretação dessas cláusulas de maneira coletiva e, portanto, uniforme. Independentemente de concordar ou não com a decisão, o procedimento adotado foi incrível. A iniciativa do órgão regulador (FCA) na defesa dos interesses segurados, algo inédito, e o processo tramitou de forma muito rápida. Em menos de 1 ano, obteve-se uma decisão da Suprema Corte com uma interpretação para essas cláusulas. Imagine quando processos judiciais deixarão de ser propostos em razão desse procedimento? A rapidez e a segurança jurídica obtidas são muito positivas para o mercado, mesmo que se discorde de alguns pontos da decisão.

Nesses contratos havia cláusula de exclusão de pandemias? Ou o pagamento deve ser feito apenas nos contratos sem a exclusão?

Não havia exclusão para pandemias. O objetivo do julgamento foi justamente interpretar essas cláusulas num contexto de pandemia, que obviamente não era o risco imaginado quando essas cláusulas foram elaboradas.

E no Brasil, como esta sendo conduzido este tema?

No Brasil, esse tipo de cláusula é muito rara. Portanto, são poucas as reclamações de sinistros de lucros cessantes e as que foram feitas, foram rejeitadas administrativamente de forma sumária, já que não havia cobertura, quer em razão de exclusão expressa relacionada à pandemia ou de disposição expressa no sentido de ser necessária uma caracterização do dano material para acionar a cobertura de lucros cessantes. Já há alguns litígios e outros devem ser iniciados com reclamações de lucros cessantes decorrentes do fechamento de empresas em função da pandemia, mas entendo que o número de casos não deve ser alto.


Os valores a serem pagos, ate onde sei irrisórios, devem ser feito pela preservação da imagem do setor? 

Os valores a serem pagos no Reino Unido são altíssimos e decorrem do julgamento. No Brasil, se não há cobertura, o pagamento não pode, nem deve ser efetuado. Além de problemas de recuperação de resseguro, a seguradora poderia enfrentar questionamentos da própria SUSEP. 

Os clientes estão acionando as seguradoras?

Conforme acima, por enquanto, tenho notícias de ações pontuais de clientes. Como houve suspensão de prazos prescricionais, esse número deve aumentar, mas não acredito que será significativo.

E se as seguradoras pagarem, terão o apoio dos resseguradoras?

Entendo que não. O pagamento ‘ex gratia’ é sempre excluído do contrato de resseguro.

Qual seria a melhor saída para esse complexo debate, na sua opinião?

Diferentemente do Reino Unido, temos poucos casos no Brasil que ensejariam uma dúvida de interpretação sobre a cobertura de lucros cessantes. Nesses casos, se houver uma dúvida legítima  sobre a existência ou não de cobertura,  a seguradora deve regular o sinistro e apresentar ao segurado sua análise de cobertura. Se não houver consenso, é possível tentar uma mediação ou conciliação, antes de litigar. O litígio (na Justiça comum ou arbitragem) é o último recurso, mas pode haver  casos em que se mostre inevitável.

Denise Bueno
Denise Buenohttp://www.sonhoseguro.com.br/
Denise Bueno sempre atuou na área de jornalismo econômico. Desde agosto de 2008 atua como jornalista freelancer, escrevendo matérias sobre finanças para cadernos especiais produzidos pelo jornal Valor Econômico, bem como para revistas como Época, Veja, Você S/A, Valor Financeiro, Valor 1000, Fiesp, ACSP, Revista de Seguros (CNSeg) entre outras publicações. É colunista do InfoMoney e do SindSeg-SP. Foi articulista da Revista Apólice. Escreveu artigos diariamente sobre seguros, resseguros, previdência e capitalização entre 1992 até agosto de 2008 para o jornal econômico Gazeta Mercantil. Recebeu, por 12 vezes, o prêmio de melhor jornalista de seguro em concursos diversos do setor e da grande mídia.

2 COMENTÁRIOS

  1. Esta discussão envolve o “legal e o moral”: aspecto legal prevê que o risco pandemia não estaria coberto pelo seguro mas isso seria moral? O papel do seguro em verdade é proporcionar segurança no caos… sendo assim, creio que cada situação deva ser avaliada antes da recusa da indenização.

  2. Eu fui questionando por um de nossos clientes se de fato não poderiam receber as despesas de continuidade e os prejuízos financeiros uma vez que houve a contratação de lucros cessantes, na transferência de risco para uma seguradora, quando por determinação governamental a empresa e suas filiais foram obrigadas a baixar as portas, independente de pandemia, mas por uma determinação sem resultados testados e específicos para a determinação, eles pretendem estudar a ação

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