Doente, o setor de saúde suplementar busca a cura no médico da família

O 3º Encontro de Comunicação da Saúde Suplementar, organizado pela FenaSaúde, gerou um amplo debate sobre o tema Atenção Primária à Saúde (APS). Uma das conclusões do encontro é de que a APS é uma tendência sem volta amparada na busca do equilíbrio do financiamento da saúde. Um tema que interessa a todos os envolvidos: governo, operadoras, prestadores, consumidores, investidores. Certamente não é a única solução para um setor tão complexo em qualquer país do mundo. Mas é o que tem ajudado países como Alemanha e Inglaterra, por exemplo, a oferecerem saúde com certa qualidade para toda a população.

Ninguém acredita que será uma tarefa fácil prestadores de serviços, operadoras e até mesmo os clientes colocarem a saúde, e não a doença como é hoje, em primeiro plano. As operadoras querem lucro, os prestadores reclamam que são mal remunerados e os clientes abominam ter sua liberdade de escolha em risco. No entanto, diante da grande confusão em que se encontra o segmento de saúde suplementar, com todos se queixando de perdas e danos, a saída é arrumar a bagunça que se instalou desde 1999, com a Lei 9.656/98 (conhecida como Lei dos Planos de Saúde).

Certamente a lei trouxe avanços, mas tirou da iniciativa privada a liberdade de gerir contratos. Passou a exigir que operadoras dessem cobertura para tudo e proibiu reajustes de preços com bases atuariais. Ai começou a degringolar, aos poucos, um setor que tinha tudo para ser um gigante. As operadoras pararam de vender planos individuais. Empreendedores criativos logo criaram planos empresariais, mas que na verdade eram individuais. Médicos e hospitais pediam reajuste no preço dos serviços. Operadoras não davam. Um cenário de fraudes em contas médicas evoluiu rápido, chegando ao ponto de operar pacientes sem necessidade, o que eclodiu em investigações e prisões sobre negociatas das órteses e próteses. As fraudes de empréstimo de carteira do plano para o vizinho ou de pedir dois recibos de consultas médicas para elevar o valor de reembolso se tornaram brincadeira de criança diante das contas hospitalares.

O caos era bem aceito por todos, pois se ganhava dinheiro com a aplicação dos recursos captados pelas operadoras no mercado financeiro, numa taxa de juros de dois dígitos. Como o volume de vendas e de atendimentos era imenso, todos achavam que estavam ganhando. Inclusive o governo, que desafogou o SUS com boa parte dos brasileiros exibindo carteirinhas de planos de saúde privada. Ter plano de saúde chegou até a ser encarado como status social. No entanto, todos estavam construindo um “mostro”, que mostrou a cara a partir de 2014, com a recessão econômica.  

A queda do emprego, perda de poder aquisitivo da população e taxa de juros reduzida ao patamar de 6,5% ao ano acordou todos para o problema, pois a conta não fechava mais para ninguém. Operadoras reagiram com reajustes que não cabem no bolso do consumidor e redução dos valores pagos aos prestadores. Os consumidores deixaram de pagar os planos e as fraudes nas contas médicas explodiram. Um médico, para compensar uma cirugia na qual recebia do plano menos de R$ 200, passava a cobrar duas. Pacientes que poderiam fortalecer a coluna com fisioterapia eram encaminhados para procedimento cirúrgico para colocação de próteses. Isso só para citar dois dos exemplos das fraudes mais comuns levantadas.

Tal situação sangrou o setor de saúde suplementar, adoecendo um número sem fim de pessoas, profissionais, instituições. Mais de uma centena de planos de saúde deixou de operar e cerca de 3 milhões de brasileiros perderam renda e voltaram para o SUS. E o cenário futuro, detalhado por especialistas, é sombrio, caso nada seja feito.

No meio deste tiroteio, a Agência Nacional de Saúde (ANS) tenta colocar ordem, mesmo atropelada por decisões políticas. Para resumir, chegamos hoje no investimento de todos na Atenção Primária à Saúde. Rodrigo Aguiar, diretor de Desenvolvimento Setorial da ANS, destacou o trabalho de mais de um ano da agência para incentivar a adoção da Atenção Primaria à Saúde por parte das operadoras de planos, como forma, inclusive, de se instituir o cuidado coordenado.

Por meio de duas normas – uma publicada no final de 2018 e outra no início deste ano –, a ANS criou o Programa de Certificação de Boas Práticas em Atenção à Saúde, o que deve incentivar as operadoras a desenvolverem práticas que aperfeiçoem cada vez mais o cuidado com seus beneficiários. “O objetivo com a coordenação do cuidado é promover a qualidade em saúde, fazendo com que o cuidado seja seguro, efetivo e focado no paciente”.  A outra norma dispõe sobre adoção de práticas de governança corporativa, com ênfase em controles internos e gestão de riscos, contribuindo para que a remuneração dos serviços seja focada em valor. “Para que o cliente tenha a real percepção de que foi bem atendido”, explica Aguiar.

Nenhuma operadora se candidatou a receber o certificado, pois as normas são recentes. “Mas várias já nos procuraram para entender melhor ou tirar dúvidas. Acredito que até o final do ano esse assunto deverá evoluir”, afirmou Aguiar. No entanto, várias empresas apresentam cases de sucesso de APS, como SulAmérica, Bradesco, Notredame Intermédica e Amil, resumidas em uma pesquisa realizada pela jornalista Cristiane Segatto, especializada em saúde e vencedora de diversos prêmios nacionais e internacionais nesta categoria. Os resultados encantam tantos os médicos como pacientes e equipe disciplinar (o resumo da pesquisa será divulgado em breve).

João Alceu Amoroso Lima, presidente da FenaSaúde, observou que o assunto APS não é desconhecido, principalmente pelos brasileiros que se utilizam do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele lembrou que há 20 anos, quando a saúde privada começou a falar sobre atenção primária, tendo a figura do médico de família como o elo entre o paciente e seu tratamento, resultando em um atendimento mais coordenado, houve críticas relacionadas à restrição de acesso. “Como consequência, temos hoje beneficiários perdidos nessa fragmentação”, frisou, acrescentando que APS é capaz de resolver em até 80% as demandas da saúde; em 17% as internações; e em cerca de 30% a procura por serviços de urgência e emergência.

“Apesar de ser um tema antigo, ele está sendo resgatado pelas operadoras, que criam programas diferenciados para utilizar o sistema de forma mais racional”, diz presidente da FenaSaúde

Gustavo Gusso, professor de Clínica Médica e Propedêutica da Universidade de São Paulo (USP), ressaltou que a atenção primária visa principalmente facilitar e qualificar o acesso do paciente, embora no Brasil a percepção seja contrária, muito em função de que os médicos especialistas acreditam ser generalistas. Com isso, se conhece muito pouco a jornada do paciente. De acordo com o professor da USP, a atenção primária implica na existência da secundária e na terciária. “A secundária praticamente não existe porque a jornada já passa pelo especialista. A APS deve ter um médico generalista e um especialista, no chamado atendimento compartilhado”, assinalou, acrescentando que a vantagem do médico de família é justamente conhecer o paciente.

Outras vantagens da adoção da atenção primária à saúde, como organização e planejamento do atendimento, atuação precisa nas necessidades do beneficiário e redução de custos, foram ressaltadas por José Cechin, diretor executivo da FenaSaúde, durante o painel “Jornada do paciente com APS nas operadoras de planos de saúde – resultados práticos”. Cechin reconheceu haver algumas barreiras para a adoção desse modelo assistencial, como a falta de profissionais que queiram assumir o papel de médico cuidador e a deficiência na infraestrutura física nas unidades de atendimento. “A prática da APS passa pela mudança de cultura em todos os níveis”, frisou. Em sua palestra, o diretor da FenaSaúde mencionou alguns resultados obtidos por algumas operadoras de planos de saúde que já desenvolvem programas de APS.

De acordo com ele, nas empresas que desenvolvem atenção primária, o índice de resolutividade é de 90%, enquanto a retenção de beneficiários também ultrapassa os 90%. Nessas operadoras, houve queda de 20% no número de internações em relação às que não têm programas desse tipo. Além disso, entre os idosos, houve redução de 67% dos pacientes crônicos e 65% nas internações. Na área de oncologia, informou que a adesão ao tratamento cresceu 44% e o índice de satisfação está em 98%.

Morishita: “Precisamos dar confiança às pessoas com a coragem moral de enfrentar essa desconfiança. Não apenas com informação, mas comunicação de qualidade que permita ao consumidor a liberdade de escolha”

Direito do Consumidor: conhecimento, informação e confiança do consumidor em relação à atenção primária foram debatidos no painel “Defesa do Consumidor”, dividido entre Ricardo Morishita, professor de Direito do Consumidor e presidente do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP Pesquisas), e Juliana Pereira, diretora executiva de Clientes da Qualicorp e ex-secretária da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).

Morishita destacou que, se o momento é de transição de modelos – assistencial e de remuneração –, é fundamental que o consumidor seja informado com qualidade para que possa decidir sobre em qual modelo deseja estar. Em sua avaliação, a falta de profissionais dispostos ao atendimento generalista e a ausência de infraestrutura para a realização de programas de APS podem ser resolvidos mais facilmente, mas o medo e a descrença dos consumidores são mais sensíveis. “Precisamos dar confiança às pessoas com a coragem moral de enfrentar essa desconfiança. Não apenas com informação, mas comunicação de qualidade que permita ao consumidor a liberdade de escolha”, sublinhou.

Juliana lembrou que o sistema vigente, com a carteirinha que facilita o acesso e o livro que liga o beneficiário à rede, permite que o consumidor tenha acesso ao cuidado, mas não resolve a necessidade dos pacientes, por causa do fato de o cuidado ser fragmentado, o que faz com que as pessoas fiquem perdidas no sistema de saúde. “Esse cuidado precisa ser mais integrado e coordenado. O quarto elemento desse processo é o engajamento. Não podemos tratar o beneficiário com mero pagador de boleto”, enfatizou. A diretora da Qualicorp destacou, entre os inúmeros desafios da adoção da APS, justamente a construção da confiança. “O consumidor precisa compreender os conceitos envolvidos nesse modelo, de forma transparente. Se ele não for informado a ponto de não conseguir enxergar a jornada, corremos o risco de o assunto se reduzir a obstáculo de acesso, aumentando o espaço de atrito”, avaliou.

Sandro Leal, superintendente da FenaSaúde, resumiu o propósito do evento e os esforços que estão sendo feitos pelas operadoras de planos de saúde para melhorar a qualidade do atendimento aos beneficiários. Ao citar o economista Richard Thaler, prêmio Nobel de Economia, Leal ressaltou que sempre há a possibilidade de o consumidor não fazer as melhores escolhas para ele. Por isso sempre é necessário “um empurrão”. No seu entendimento, a Federação está dando esse estímulo ao promover debates com mais uma edição do Encontro de Comunicação. “As pessoas precisam desse empurrão. As operadoras estão fazendo isso e a FenaSaúde está fazendo a sua parte, trazendo e estimulando a discussão”.

Todos sabem que é uma tarefa complexa, principalmente por envolver a mudança de cultura dos prestadores, dos beneficiários, necessitar de alterações em normas e leis que facilitem e estimulem a integração da cadeia tendo a saúde, e não a doença, no centro das decisões. Os resultados apresentados comprovam que os beneficios da APS são relevantes e o grande desafio agora é expandir a base já criada por algumas operadoras e assim ter planos com preços que caibam no bolso do cliente e prestadores dedicados a tratar daquele que infelizmente ficou doente.


Denise Bueno
Denise Buenohttp://www.sonhoseguro.com.br/
Denise Bueno sempre atuou na área de jornalismo econômico. Desde agosto de 2008 atua como jornalista freelancer, escrevendo matérias sobre finanças para cadernos especiais produzidos pelo jornal Valor Econômico, bem como para revistas como Época, Veja, Você S/A, Valor Financeiro, Valor 1000, Fiesp, ACSP, Revista de Seguros (CNSeg) entre outras publicações. É colunista do InfoMoney e do SindSeg-SP. Foi articulista da Revista Apólice. Escreveu artigos diariamente sobre seguros, resseguros, previdência e capitalização entre 1992 até agosto de 2008 para o jornal econômico Gazeta Mercantil. Recebeu, por 12 vezes, o prêmio de melhor jornalista de seguro em concursos diversos do setor e da grande mídia.

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