Artigo de Luciano Portal Santanna, Superintende da Susep, Procurador Federal, Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação e Mestre em Direito da Regulação Econômica, publicado na Consultor Jurídico
Em homenagem ao princípio da transparência na Administração Pública, cuja importância e aplicabilidade cresceram de maneira exponencial nos últimos anos, especialmente em razão de ações implementadas no âmbito do Governo Federal, vimos, democrática e respeitosamente, prestar os necessários esclarecimentos à comunidade jurídica acerca de recente entrevista publicada neste prestigiado site, via qual foram feitas críticas em relação ao intervencionismo regulatório e à capacidade técnica do corpo funcional da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP.
Não obstante a superação do laissez-faire, expressão que simboliza o liberalismo econômico que tantos danos já causou à economia mundial, vez ou outra ressurge no espaço público o discurso, nem sempre desinteressado, avesso à intervenção estatal na economia, no caso específico à ação de natureza regulatória no mercado de seguros.
Chama a atenção, no entanto, que esse combalido discurso econômico-liberal, a pretexto do zelo com crescimento “natural” do mercado, ressurja justamente num segmento da economia que recentemente escapou ileso em meio à crise econômica internacional graças justamente à ação regulatória, preventiva e eficaz; que cresce como poucos setores da economia nacional e internacional, em completo descolamento com o crescimento do PIB brasileiro; e que, paradoxalmente, tem sido objeto de medidas regulatórias que nitidamente favorecem o seu desenvolvimento.
Em sintonia com a política de inclusão social e financeira do Governo Federal, que tem beneficiado a milhões de brasileiros, a Susep recentemente regulamentou o microsseguro no Brasil (com regras de estímulo ao seu desenvolvimento e que há anos eram aguardadas pelo mercado), disciplinou a comercialização de seguros na extensa rede varejo (importante canal para acesso ao consumidor de baixa renda e que amplia drasticamente o número de agentes responsáveis pela distribuição de seguros) e também por meios remotos (estimulando o uso da internet e do telefone como meios de contratação, instrumentos ainda praticamente inexplorados pelas seguradoras no País, ao contrário do que ocorre no exterior). Tudo com o escopo de proporcionar maior acesso, facilidade, agilidade, transparência e redução de preços ao consumidor, mas também favorecendo o crescimento sustentável do mercado.
Não se ignora, contudo, que o excesso de regulação pode trazer prejuízos injustificáveis à atividade econômica. A propósito, a moderna doutrina jurídica orienta no sentido de que a legitimidade regulatória não advém exclusivamente da competência formalmente conferida por lei aos reguladores, mas também da qualidade da fundamentação de suas decisões (precedida de análise de impacto regulatório) e do uso de procedimento que propicie a crítica prévia, o debate, a apresentação de sugestões e, assim, o aprimoramento das propostas de normativos ou mesmo o seu arquivamento, quando seus efeitos sejam considerados inadequados ou desproporcionais para atingir os objetivos almejados.
O processo normativo no âmbito Susep obedece plenamente a tais critérios. Temos comissões mistas permanentes; em algumas matérias mais complexas criamos grupos de trabalho, também com a participação do setor; normalmente as propostas são submetidas à consulta pública e sempre, em qualquer hipótese, a aprovação dos normativos é precedida de reuniões com representantes do mercado regulado. Recentemente passamos a justificar nos processos respectivos o acolhimento ou a rejeição de cada uma das sugestões apresentadas. Tudo de forma a permitir transparência e maior qualidade na ação normativa, totalmente desprovida de qualquer interferência político-partidária.
Verificamos que a crítica, nos seus aspectos mais específicos, também revela elevado grau de desconhecimento em relação à ação regulatória da autarquia. No seguro de responsabilidade civil de D&O, tema no qual o próprio autor reconhece ignorar as razões da vedação da cobertura por risco de multa administrativa para aqueles que exercem funções de gerência ou direção, a Susep apenas e simplesmente deu cumprimento à recomendação do órgão da Advocacia-Geral da União responsável por sua orientação jurídica e, após debate interno e com os agentes do mercado, elaborou minuta de normativo que disciplina a matéria no mesmo sentido pretendido pelo autor de tão severa critica e que irá à consulta pública nos próximos dias, razão pela qual deixo de debatê-la no seu mérito.
Em relação ao suposto engessamento do mercado de seguros de responsabilidade civil, em razão da inibição da criatividade e dos padrões impostos pela Susep, com a devida vênia, não há como concordar. Por muito tempo, as normas relacionadas editadas pelo IRB, ad referendum, requeriam, em caráter obrigatório, além da cobertura principal, dezenas de outras coberturas adicionais, constituindo um conjunto apropriado apenas para grandes empresas. Quando da entrada em vigor da Lei Nº 10.406, em 2003, a SUSEP se prontificou a adaptar os normativos em vigor às disposições do novo Código Civil, e, com intensa colaboração da FenSeg, iniciou um trabalho de atualização do seguro de RC Geral, cuja norma básica remontava a 1981.
A tônica de tal atualização foi democratizar o seguro de RC Geral, permitindo a pequenos empresários obterem seguros adequados às suas atividades, de maneira que não os obrigassem a contratar coberturas que não lhes interessavam. Nesse contexto, a nova circular nunca estabeleceu a obrigatoriedade do uso das Condições Contratuais Padronizadas e as seguradoras sempre tiveram liberdade para desenhar produtos adequados a um segurado específico, desde que respeitada a legislação em vigor.
Obviamente, tratando-se de uma norma muito extensa, já eram esperados ajustes, os quais vêm ocorrendo na medida em que a própria Susep verifica essa necessidade e desde que surjam demandas das partes interessadas adequadamente justificadas.
Paralelamente, a disponibilização do seguro para pequenos e médios segurados tem proporcionado a entrada, no ramo, de outras seguradoras especializadas. Tal comportamento é constatado nos dados estatísticos do mercado, que demonstram que o número de players vem aumentado a partir de 2011. Aliás, ao contrário do que é observado nos demais segmentos, o Ramo de Responsabilidade Civil é um dos poucos em que a evolução temporal dos dados mostra que a concentração vem sendo reduzida, tendência registrada, inclusive, após a publicação da norma. Tampouco tem fundamento a crítica que advém em face da vedação dos denominados produtos singulares, que representavam buracos negros no sistema de supervisão.
Ao contrário de todos os demais produtos, que são previamente analisados pela autarquia consoante o disposto na legislação, especialmente com o propósito de verificar sua adequação ao consumidor, os singulares não passavam por qualquer crivo regulatório a pretexto da impossibilidade de, num mercado secular como o de seguros, desenvolver produtos que atendam a todas as necessidades advindas da evolução e do dinamismo das relações sociais e econômicas. Ora, da análise do mercado, verificamos que não há dinamismo ou criatividade que não possa ser traduzida num plano de seguro submetido à análise prévia da autarquia. Uma vez liberado pela área técnica esse plano, o respectivo produto poderá ser comercializado quantas vezes desejar a seguradora.
De fato, a partir da publicação da Circular Susep n° 458/2012, tais planos continuam a ser submetidos à Susep, contudo devem observar o disposto no normativo, por meio de coberturas adicionais e/ou condições particulares, de contratação facultativa, inseridas em planos não-padronizados, de forma a atender as necessidades específicas de seus segurados. Ou seja, o que foi extinto foi a forma de apresentação dos então chamados seguros singulares, que era muito simplificada e dificultava o controle satisfatório por parte da Susep.
Esta questão, que envolve diretamente os chamados “programas mundiais”, foi, recentemente, discutida com representantes do mercado, quando da realização de workshop organizado pela FenSeg, e que contou com a participação de um grande número de técnicos da Susep e de representantes de grandes multinacionais, com o objetivo de elucidar as principais dúvidas sobre a elaboração desse tipo de produtos.
Na ocasião restou claro que os produtos tradicionais poderiam atender a essas demandas, em muitos casos necessitando apenas da elaboração de condições particulares que atendessem solicitações específicas desses segurados.
Não somos, de qualquer forma, reativos a reflexão sobre qualquer tema e possibilidade de alteração normativa existe na medida em que os argumentos se apresentarem tecnicamente sustentáveis e razoáveis.
Os períodos de transição estabelecidos entre um normativo e outro podem gerar estresse, normalmente decorrentes da falta de atenção a alguma regra, inclusive no que tange ao prazo estabelecido para adaptação. A Susep se mantém atenta ao impacto de suas ações e não raro, como já ocorreu no caso, prorroga prazos quando verifica sua necessidade. Certo é que teremos, ao fim desse período de transição, produtos de seguro de responsabilidade civil com melhor qualidade ao consumidor, em relação a quem o Estado tem o dever constitucional de tutela.
Antes do desejado “compromisso com o negócio”, a Susep tem um compromisso com o respeito à ordem jurídica e com o consumidor brasileiro, que é o beneficiário final de sua ação regulatória, sempre pautada nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
É justamente nesta seara que, embora por motivação notadamente diversa, também defendemos para a Susep regras similares às conferidas às agências reguladoras, no que tange à investidura e à vedação à exoneração ad nutum dos seus dirigentes. A utilização de critérios técnicos e objetivos para escolha dos diretores deveria, sem dúvida, constar do texto legal, considerando não apenas a capacidade dos indicados como também o risco de um “demasiado compromisso com o negócio”, que seja capaz de gerar um desequilíbrio na atuação do regulador.
No mesmo sentido, a vedação à exoneração desmotivada dos dirigentes, antes de transcorrido determinado lapso temporal para os quais seriam nomeados, minimizaria o efeito de pressões por ocasião da tomada de importantes decisões, conferindo-lhes, em tese, maior autonomia.
Os entes públicos estão, todos eles, sujeitos à critica e é salutar e democrático que assim o seja, até mesmo para o aperfeiçoamento de sua estrutura e forma de atuação. Respeitamos, pois, a crítica pública, especialmente quando construtiva. O mesmo não pode ser dito, todavia, de uma manifestação que desqualifica, de forma injusta, o quadro de servidores da Susep.
Os profissionais recém-admitidos na Susep, por meio de difíceis e concorridos concursos públicos (para cargos que têm remuneração diferenciada, inclusive em relação àqueles que compõem a estrutura das agências reguladoras), têm formação em diversas áreas do conhecimento e são recepcionados por profissionais experientes e altamente qualificados, permitindo a transferência da chamada “cultura da casa”, construída ao longo de várias décadas.
Como a carreira da SUSEP é valorizada pelo mercado de trabalho, os concursos selecionam não apenas recém-formados, como afirma o entrevistado, mas também, e principalmente, pessoas que já atuavam no segmento há alguns anos, nos quais se incluem ex-servidores do IRB – Brasil Re e executivos de seguradoras. Vale observar que a média de ingresso no serviço público é superior a 30 anos de idade e, não raro, os servidores da Susep são contratados por empresas supervisionadas, exatamente pelo conhecimento técnico e domínio da legislação de seguros.
A afirmação de que “o investimento em qualificação é muito baixo”, por sua vez, contrasta com uma realidade na qual quase a totalidade do quadro de servidores analistas estáveis detêm cursos de pós-graduação, em seus diversos níveis, inclusive doutorado. A propósito, vale dizer que há pouco mais de um ano multiplicamos o total dos recursos destinados à capacitação por meio de um acordo com a Escola Nacional de Seguros – Funenseg, que atualmente patrocina cursos de extensão e de pós-graduação próprios ou em outras instituições de ensino, no País ou no exterior. Desta forma, com uma injeção de recursos muito superior e que complementa o orçamento público, podemos dizer que atualmente não faz curso de pós-graduação na Susep apenas quem não quer.
A Susep regula, de forma técnica e desprovida de qualquer conotação político-partidária, os mercados de seguros, capitalização, previdência complementar aberta, resseguros e corretagem de seguros, de maneira cada vez mais atenta aos interesses do consumidor e em prol do desenvolvimento e da solvência dos agentes econômicos, graças a uma atuação participativa, qualificada e eficiente dos seus servidores, os quais merecem mais respeito.