A principal preocupação das seguradoras européias não é com a crise, que traz volatilidade aos mercados financeiros de todo o mundo. O assunto que tem dominado os lobistas da indústria de seguros na Europa é a Solvência II, regras de capital baseado em risco para as seguradoras. Nos bancos, tais regras são conhecidas como Basiléia.
A expectativa é de que as regras comecem a valer em 2012. Muitas companhias terão de aportar capital. Como ainda não se sabe quanto, pois as regras ainda estão sendo debatidas, a saída é ir acumulando capital para não ter de reduzir as vendas ou contratar resseguro.
Tom Wilson, executivo da Allianz, maior seguradora do mundo depois da queda da AIG, é especializado nas regras de Solvência II, que deverão nortear toda a regulamentação mundial da indústria de seguros com o claro objetivo de padronização e assim facilitar a concorrência das empresas globais.
No caso da Allianz, caso tenha de aportar capital, ele está reservado. Se não tiver de aportar, o dinheiro acumulado pode servir para fazer frente a uma esperada onda de fusões e aquisições por conseqüência da necessidade de adaptação ao novo cenário regulatório europeu. Veja a seguir os principais trechos da entrevista concedida pelo especialista da Allianz:
Quais os principais impactos para as seguradoras europeias com a implementação de Solvência II?
Eu diria que haverá dois impactos importantes. O primeiro é o fortalecimento da gestão de risco e da cultura de risco, de abordagens técnicas e sistemas para a indústria. Em segundo lugar, haverá algumas implicações para diferentes linhas de negócios e produtos. Enquanto abordagem baseada no risco, a Solvência II é diferente da Solvência I. Dessa forma, alguns produtos ou linhas de negócios serão considerados “melhores” com o modelo II e outros “piores”.
Desde quando as seguradoras vêm se preparando?
A maioria das grandes seguradoras europeias investe na capacidade de gestão de risco há muitos anos. Após a crise de 2001, grande parte implementou abordagens de gestão de risco em empreendimentos, incluindo sistemas, governo, modelos e controles.
A área de vida será mais atingida?
Particularmente, acredito que haverá maiores implicações em termos do acúmulo de ativos no segmento de Vida e da criação de produtos de poupança, estratégias de precificação e investimentos devido aos custos de capital potencialmente mais altos. O impacto será maior para o segmento de Vida comparado a outros segmentos porque a Solvência II foi criada originalmente para ter uma abordagem mais baseada no risco do que a Solvência I, já que esta não tratava explicitamente do risco inerente ao mercado financeiro, sendo que o segmento de Vida está constantemente exposto a riscos de mercado.
Acha que há uma tendência do mundo seguir as regras que forem definidas em Solvência II?
É complicado defender que um modelo de solvência baseado no risco não seja do interesse da indústria, dos detentores de apólices e dos reguladores. Assim, acredito que muitos países seguirão a Solvência II, por exemplo, ao desenvolver uma abordagem de solvência mais baseada no risco. No entanto, eu também acredito que ela não será idêntica ao modelo da Solvência II europeu. Por exemplo, os princípios desenvolvidos para a União Européia podem precisar ser adaptados para refletir os mercados capitais, características de produtos e posições de solvência locais.
Quais as principais regras que podem ser globais e quais o senhor acredita que merecem tratamento personalizado pelos órgãos reguladores de cada país?De maneira geral, a Solvência II foi criada para ser aplicada em todos os negócios e em todos os países em que uma seguradora internacional atue. Assim, o modelo pode a princípio ser adotado localmente pela maioria dos países. No entanto, como já mencionamos, pode ser necessário um ajuste para os mercados emergentes ou com mercado de capitais menos desenvolvido, e isso pode precisar acontecer em nível local. Alem disso, outras adaptações podem ser necessárias para manter os custos de implementação local em um nível que possa ser absorvido pela indústria.
Carlos Montalvo, secretário geral de seguros da Committee of European Insurance and Occupational Pensions Supervisors (Ceiops), afirmou que grande parte das seguradoras européias não precisa de capital adicional para cumprir as regras de Solvência II. Concorda com ele?
O Estudo de Impacto Quantitativo no 4 (QIS4), conduzido em 2007, antes da crise, sugeria uma proporção média de solvência da indústria de aproximadamente 210 % (230% para companhias de Vida e 190% para seguros gerais). Entretanto, desde então as calibrações têm seguido um caminho interessante. Após a crise de 2008/2009, o equivalência proposta foi muito mais conservadora.
Qual era a sugestão?
Na verdade, a indústria estimava, se me lembro corretamente, uma proporção média de solvência abaixo de 100% com base nessa calibração mais conservadora, fazendo com que a indústria negociasse proativamente uma calibração mais racional e econômica. Como se pode imaginar, chegar a este estado foi como um passeio de montanha russa, começando com a calibração QIS4 que foi “razoável”, seguida de uma calibração excessivamente conservadora que causou intensas discussões entre a indústria e os reguladores, mas agora se estabilizando a uma calibração QIS5 um pouco mais razoável.
A Geneva Association, que reúne os principais CEOs do mundo, tem liderado um movimento mundial para explicar aos órgãos reguladores que a dinâmica das seguradoras difere muito da dinâmica dos bancos e assim evitar que as seguradoras sejam prejudicadas por normas que fogem da realidade. Dentro deste contexto, quais as principais diferenças no quesito gestão de risco?
Eu diria que há algumas diferenças bastante importantes entre as indústrias bancária
e a de seguros. A primeira e principal é que as companhias de seguros são mais conservadoras e têm maior responsabilidade e estrutura de financiamento. Resgatamos prêmios e os investimos para assegurar nossas responsabilidades futuras. Enquanto os bancos podem financiar a si próprios com financiamento interbancário e de depósito bastante líquido, o que pode literalmente evaporar durante uma crise de liquidez, as responsabilidades do setor de seguros são muito mais estáveis e têm liquidez baixa, o que representa uma fonte muito mais estável de financiamento.
Só isso basta para diferenciar?
As companhias de seguros desempenham um papel valioso na sociedade ao absorver riscos que não podem ser comercializados, por exemplo o risco de uma residência familiar se incendiar ou o risco do principal provedor da família ficar incapacitado. Como conseqüência, as seguradoras focam na subscrição dos riscos de seguros que planejamos manter, o que exige a criação de um portfólio diversificado de negócios e a contenção ativa de riscos de acúmulo, tais como catástrofes naturais.
Além do risco do negócio, há o risco financeiro, não?
O risco do mercado financeiro também é um risco que se acumula e, como conseqüência, as companhias de seguros per se não necessariamente buscam maiores taxas de juros, ações ou riscos de crédito associados aos ativos de seu balanço. Obviamente, precisamos, sim, aceitar a existência de ativos de risco, mas nossa aceitação do risco do mercado financeiro importa menos que nossos valores de servir aos clientes e à sociedade. Finalmente, a indústria de seguros tem uma estrutura de remuneração diferente que dá menos ênfase ao curto prazo ou a resultados de Marcação-a-Mercado e mais à criação de valor no longo prazo. Naturalmente, isso ajuda a alinhar os interesses da gestão ao dos acionistas, detentores de apólices e reguladores e não promove a tomada de risco excessiva dentro da organização.
Que tipo de regulamentação poderia ser ideal para mitigar o risco financeiro das seguradoras no que diz respeito a aplicações financeiras, sem engessar a criatividade dos gestores e balizar por baixo o rendimento da carteira de investimentos?
Eu diria que se “acertarmos” com a Solvência II não poderia haver um modelo regulatório melhor. No entanto, também acredito que há alguns assuntos que devemos abordar para “acertar”.
Quais são os assuntos?
Há, na verdade, algumas áreas nas quais a indústria do seguro e os reguladores deveriam se concentrar. Primeiramente, temos que garantir que qualquer sistema baseado em risco que coloquemos em ação não promova comportamento excessivamente pró-cíclico de gestão em tempos de mudanças ou crises. Nesse sentido, é importante reconhecer que a Solvência 2 encaixou todo o balanço da área de seguros em um modelo Marcação-a-Mercado ou Marcação-a-Modelo, o que não é o caso na industria bancária.
Poderia explicar isso?
O modelo de Marcação-a-Mercado da Solvência 2 pode ser o mais apropriado de maneira geral, porém em tempos de crise caracterizados por deslocamentos extremos de mercado, ele pode levar a mudanças dramáticas e contra-producentes em termos de proporção de solvência. Assim, acredito que algumas medidas de precaução devem ser planejadas na Solvência 2, tanto no Pilar 1, que define os requerimentos de capital mínimos quantitativos, quanto no Pillar 2, que define o papel da intervenção de supervisão.
E isto basta para garantir a solvência?
Precisamos nos assegurar de que a calibração aplicada em tempos normais seja apropriada para o negócio não apenas para que em tempos de adversidade ela não crie os incentivos errados, mas também para que em tempos normais haja calibração razoável para refletir a economia verdadeira do negócio. Nesse sentido, a Solvência 2 deveria refletir exatamente a diversificação que é a pedra fundamental para se gerir uma companhia de seguros, especialmente a diversificação das responsabilidades. A Solvência II deveria reconhecer a diversificação ao estabelecer o padrão para responsabilidades técnicas por meio da margem de valor de mercado, bem como ao calcular os requerimentos gerais de capital de risco.
Esta regra vale também para vida e previdência?
Isso se aplica mais aos segmentos de seguros gerais (ramos elementares). Para o segmento de vida, particularmente para a acúmulo de ativos e produtos de poupança, precisamos nos assegurar de que os riscos do mercado financeiro estejam calibrados para refletir nossos produtos. Isso significa particularmente uma demonstração correta da falta de liquidez de nossas responsabilidades e das implicações em termos do reconhecimento da falta de liquidez de prêmios para contrabalançar o risco de spread de crédito, assim como a calibração de taxas de juros e de volatilidades intrínsecas para mercados pouco negociados, um ponto particularmente relevante para a aplicação da Solvência 2 em países com um mercado de capitais em desenvolvimento.
Ao mesmo tempo em que aplicar em ações é um risco é uma oportunidade e tanto de aumentar os ganhos?
Nos últimos dez anos, observei por duas vezes um declínio de 20% a 30% nos mercados de ações do G20, em 2001 e em 2008. Se olharmos ainda mais para trás, observamos choques substanciais para mercados locais também em mercados emergentes ou em desenvolvimento. Então, um declínio no mercado de ações da ordem de 20% a 30% não é um evento que acontece uma vez a cada dois mil anos – isso está acontecendo uma ou duas vezes a cada década.
Parece complicado demais isso…
Minha argumentação é simples: enquanto as ações podem ser atraentes, já que têm previsão de retorno alto, também apresentam risco muito maior. Esse risco maior não é necessariamente um problema, contanto que todos estejam conscientes disso e que as companhias de seguros e seus clientes estabeleçam um planejamento financeiro apropriado de forma a manter esses riscos em um nível sustentável ao mesmo tempo em que continuamos a cumprir com nossas promessas aos detentores de apólices. Além disso, também depende da situação financeira do cliente e de seus investimentos ou objetivos de poupança.
Mas na crise vimos que os clientes ficaram frustrados com o rendimento.
Infelizmente, isso pode muitas vezes ser difícil. Considere, por exemplo, a oferta de um produto de poupança garantida a longo prazo sustentado por ações que certamente poderia perder de 20% a 30% de seu valor a cada 10 anos. Agora considere que tal produto ofereça ao detentor da apólice a possibilidade de sacar suas economias a qualquer momento, sem multa. Claramente, há uma desconexão entre a estratégia de investimento e a opção do detentor da apólice de sacar seus fundos.
Acredita que uma boa venda, consultiva, pode ajudar a reduzir os saques e assim manter equilíbrio entre ativos e passivos?
É por isso que é importante nos assegurarmos de que esse tipo de desconexão não ocorra, e isso exige que tudo seja transparente, bem compreendido e adequadamente precificado da perspectiva incluindo tanto os riscos quanto os prêmios em potencial, para o segurado e a seguradora. Se isso for atingido, então claramente há espaço para as ações no balanço das seguradoras.
Acredita que ter conselheiros independentes ajuda a reduzir o risco das companhias?
Minha resposta talvez seja: mal não faz. Além disso, pode ser bastante benéfico se os membros do conselho independente forem profissionais experientes que entendam do negócio, seus riscos e vantagens. Ter uma supervisão e avaliação independente pode a princípio ser um desenvolvimento positivo. Se será traduzido ou não em benefícios dependerá da dinâmica interna do conselho etc. Além disso, sempre achei que se o simples ato de dizer algo em voz alta em frente a alguém pode significar um pouco mais de reflexão sobre o assunto. Então, a simples necessidade de detalhar uma estratégia para um membro do conselho independente pode ter impacto bastante positivo.
O Brasil foi menos afetado na crise financeira do que outros países e parte do mérito deste feito foi creditado ao sistema financeiro e segurador brasileiro ter regras mais rígidas do que nos EUA e Europa. Concorda com isso?
Não me sinto na melhor posição para comentar as especificidades do mercado brasileiro. Na verdade, a maior parte da indústria de seguros foi muito menos impactada que a indústria bancária. Acredito que globalmente o modelo de negócios das seguradoras esteve bastante robusto e resistente à ultima crise financeira. Isso porque temos uma base e uma estratégia de negócios diferente das dos bancos.
Qual a sua opinião a respeito da regulamentação brasileira em seguros, que até agora só regulamentou o risco de subscrição e mesmo assim só para as operações de riscos patrimoniais?
Acredito que qualquer regime de solvência razoável não pode ignorar os riscos do mercado financeiro, tanto para o acúmulo de ativos e produtos de investimento com garantias embutidas que são orientados pelos riscos do mercado financeiro quanto para negócios de propriedade e causalidade em que o retorno sobre o investimento é parte substancial da economia do negócio.
Então, é importante incluir explicitamente os riscos do mercado financeiro? Se você não tem uma abordagem baseada no risco no lado dos ativos, você está perdendo metade da folha de balanço e parte significativa da sua declaração de lucro e prejuízo em termos de retorno sobre investimentos.
Com o crescimento previsto para o mercado de seguros do Brasil, que tipo de riscos o senhor acredita serem prioritários serem implementados para garantir a solvência do setor?Não sou especialista no mercado brasileiro, mas faria duas observações. A primeira é que à medida que o mercado brasileiro amadurece, acredito que a penetração dos seguros e o desejo dos consumidores de proteger seus ativos, seja visando a economia ou a aposentadoria, ativos produtivos ou de cobertura de propriedade etc., apenas tendem a aumentar. Para atender a esse aumento na demanda é importante garantir que o estabelecimento de um modelo regulatório razoável que tanto proteja os detentores de apólices quanto permita às companhias de seguros alcançar suas necessidades de forma lucrativa.
A segunda observação é que o mercado em si passa por algumas mudanças. Acredito que a abertura recente do mercado de resseguros criou novas oportunidades, mas também criou uma necessidade para as companhias de seguros de adaptar seus modelos de negócios à nova situação e à volatilidade potencialmente mais alta, especialmente na área de subscrição de alto risco e otimização do resseguro.